Torcida x empresa: Guará reabre debate sobre clubes itinerantes
Por Mayra Siqueira.
Torcida x empresa: Guará reabre debate sobre clubes itinerantes. A exemplo do Prudente, mudança da Garça para Americana coloca em conflito interesses dos torcedores e dos proprietários dos clubes-empresas.
A frase mostra a postura de um torcedor apaixonado diante da nova fase de seu time de coração, o Guaratinguetá:
- O clube que amávamos se tornou uma aberração.
O anúncio de que a Garça, que disputa a Série B do Brasileirão, mudaria para Americana (também no interior de São Paulo), a exemplo do Barueri, que foi para Presidente Prudente em 2010, voltou a levantar o debate sobre clubes que decidem trocar de cidade. Enquanto por um lado o aumento de clubes-empresas permite que seus donos mudem suas sedes em busca de mercados mais favoráveis, os fãs que cresceram apoiando uma equipe local ficam à mercê das decisões deles.
- É um absurdo o que eles estão fazendo. Já fizeram a porcaria e agora estão sentando em cima do torcedor. Tem muita gente contra o time ainda jogar aqui e usar o nome. Odiamos esse clube agora, não consigo mais ver como o nosso Guaratinguetá – defendeu Marcelo Roma, vice-presidente de torcida organizada da Garça, criticando especialmente a decisão dos dirigentes de aumentar o preço dos ingressos para evitar protestos dos torcedores no estádio.
O clube ameaçava deixar a cidade do Vale do Paraíba já há dois anos, mas os moradores acreditavam em um acordo com a prefeitura, que nunca aconteceu, e também no apoio de empresários locais. A soma pedida de R$ 6 milhões ficou além da capacidade de arrecadação na cidade.
- Abrimos negociação com as cidades que se propuseram a fazer uma parceria entre o clube e empresas que possam nos ajudar a seguir com o projeto de termos uma boa estrutura para nossos atletas. Hoje o time gasta cerca de R$ 90 mil mensais, entre aluguel de estádio (R$ 8 mil), ambulância por jogo, moradia e alimentação para atletas, além de transportes, luz, água e outras taxas. Em Americana, quatro empresas vão ajudar e não pagaremos aluguel do estádio. A estrutura e a região favorecem – explicou o coordenador técnico Ricardo Navajas.
A resposta dos torcedores é carregada de rancor: O desejo dos moradores é de que o time que ainda leva o nome de Guaratinguetá caia para a Terceira Divisão nacional. Atualmente, a Garça está em 14º na Série B, a sete rodadas do fim do campeonato, com 40 pontos.
- O nosso principal objetivo é torcer para esse time cair. Se Americana estava pensando que roubou um time da Série B, que receba um da Série C. Nós nos orgulhávamos de torcer para o Guará, mas agora viramos chacota na região. Estamos pensando até em entrar na Justiça com uma ação coletiva por danos morais contra a empresa. Isso não vai ficar barato – defendeu Marcelo Roma.
Prestes a ficarem órfãos de clube na cidade, os torcedores discutem uma união para começar um novo time do zero, com o mesmo escudo e o mesmo uniforme, na quarta divisão paulista, para aproveitar a identidade da Garça. Como condição para isso, apenas um fator: nenhum empresário colocará as mãos no time. Desde que teve a mudança oficialmente anunciada, a torcida realizou uma série de protestos nos jogos em casa.
- O comportamento da torcida é perfeitamente compreensível. Eles queriam que permanecêssemos, mas não houve acordo. A cidade não comporta mais o crescimento do Guaratinguetá, não tem estrutura que as outras cidades ofereceram. Em Americana temos parceria, uma estrutura extracampo melhor. Já tem um outro clube tradicional (Rio Branco), que vive momento difícil, e estamos chegando e dando opção de terem Série B do Campeonato Brasileiro, Paulista de Série A1 – defendeu o presidente José Eduardo Ferreira.
Se por um lado toda Guaratinguetá lamenta, a cidade de Americana está dividida. A expectativa é de que o novo clube movimente cerca de R$ 20 milhões ao ano, mas, com a existência do Rio Branco, que hoje disputa a Série A2 do Paulista, os torcedores estão apreensivos. Os moradores da cidade temem que a nova equipe roube o espaço do tradicional clube local, além de não descartarem a chance do Americana repetir o passado e mudar-se outra vez de sede.
Mudanças de cidade: novidade no futebol brasileiro
Não há normas específicas da CBF que regulamentem a mudança de clubes de cidade. Logo, para a questão valem as normas das federações, onde os clubes são registrados. Na Federação Paulista de Futebol (FPF), há hoje uma taxa a ser paga pelo clube, no valor de R$ 800 mil, embora a entidade estude dobrar o valor a partir de 2011, para tentar coibir o interesse na mudança (veja a explicação sobre os passos para transferência de cidade no fim)
- Isso é uma coisa bastante recente, e na história dos grandes clubes não aconteceu. Envolve clubes-empresas, sociedades limitadas ou anônimas, em que o poder se concentra em uma ou duas pessoas que tomam decisões, e não associações, como são 99% dos demais times do Brasil – explicou Eduardo Carlezzo, especialista em Direito Desportivo.
Para o advogado, porém, legalmente a situação vai continuar como está.
- Não creio que viremos a ter alguma legislação quanto a isso. Tem demandas mais urgentes no futebol do que essa questão, que é de casos mais isolados. Há mais mobilização quando envolve os grandes clubes.
CONFIRA AS MUDANÇAS DE CIDADES EM CLUBES DE SÃO PAULO
ORIGEM - DESTINO - DATA
Clube Atlético Guarani Sumareense (Sumaré-SP) - Clube de Futebol Boa Vista (São João da Boa Vista-SP) - 16/03/2005
Social Esportiva Votuporanga (Votuporanga-SP) - Social Esportiva Vitória (Hortolândia-SP) - 01/09/2006
Associação Atlética Cubatense (Cubatão-SP) - Associação Atlética Montana Itapevi (Itapevi-SP) - 14/04/2008
Clube de Futebol Boa Vista (São João da Boa Vista-SP) - Nova Odessa Atlético Clube (Nova Odessa-SP) - 12/01/2009
Campinas Futebol Clube (Campinas-SP) - Sport Club Barueri (Barueri-SP) - 05/02/2010
Grêmio Barueri Futebol (Barueri-SP) - Grêmio Prudente Futebol (Presidente Prudente-SP) - 26/02/2010
Sport Club Paulista (Campo Limpo Paulista-SP) - Sport Club Paulista (Cotia-SP) - 05/03/2010
Guaratinguetá Futebol (Guaratinguetá-SP) - Americana Futebol (Americana-SP) - 15/10/2010
Num total, já houve oito mudanças no estado de São Paulo (veja na tabela acima). Embora com o aumento de clubes-empresas isso possa vir a ser uma tendência, os grandes clubes não correm riscos, segundo Carlezzo. As decisões das associações esportivas precisam passar por um conselho deliberativo, que dificilmente aprovaria este tipo de sugestão. A opção de trocar a sede do clube é em geral uma medida de uma empresa que se vê perdendo dinheiro em sua situação atual. Por isso, dentre os clubes que fogem de suas cidades de origem, a maioria reclama da falta de apoio das prefeituras e corre atrás de regiões que tenham um promissor parque industrial e empresarial para garantir apoio e engordar seus cofres.
- Não é confortável para a federação um time que fez tanto sucesso, que a cidade abraçou, de repente mudar para outra cidade. Vai ficar lá quanto tempo? Temos que dar um basta nisso e pedir uma mudança na Lei Pelé – afirmou o presidente da FPF, Marco Polo Del Nero, sobre o Guará.
De Barueri para Prudente, a caminho de Maringá: primeiro caso que chamou a atenção
A primeira mudança que realmente chamou a atenção no cenário do futebol aconteceu na Série A do Brasileirão: depois de começar do zero e, com uma série de acessos em poucos anos, chegar à Primeira Divisão do Brasileiro, o Grêmio Barueri surpreendeu e transferiu-se para a cidade de Presidente Prudente no meio do Campeonato Paulista de 2010.
Na lanterna da tabela, o Prudente sabe que não pode comemorar a mudança: o elenco foi desmontado e não encontrou em sua nova casa estrutura compatível com um time de Série A.
- A estrutura esportiva no município de Barueri cresceu junto com o clube. Ficamos lá por nove anos. Nós viemos pra cá (Prudente), e foi um choque muito grande. A cidade recebeu um clube de Série A, algo inédito, e demorou para entender quais as necessidades de um clube de Primeira Divisão. Deveríamos ter começado o Brasileiro numa estrutura melhor, e isso não aconteceu – disse Jaime Matsumoto, vice-presidente do clube.
Porém, a história do hoje Grêmio Prudente não para por aí. Insatisfeito com o péssimo ano que teve na cidade de Presidente Prudente, o clube tenta uma nova cartada: mudar-se mais uma vez e, agora, para o Paraná. Embora a diretoria prudentina negue o contato, o presidente do Grêmio Metropolitano Maringá, da terceira e última divisão do estado, confirmou que sua equipe foi procurada pelo presidente do conselho deliberativo do clube paulista, Walter Sanches.
- Estamos conversando, não há nada concreto. Temos interesse sim, não posso mentir. Eles nos procuraram, pois têm interesse em sair de lá, e a preferência é pela cidade de Maringá. Mas não posso falar mais nada, pois isso pode estragar a negociação - confirmou o presidente do clube paranaense, Aparecido Regini “Zebrão”.
Do lado do Prudente, Sanches desmente, chama de mentirosas as informações vindas de Maringá, diz desconhecer Zebrão, e afirma que o Grêmio continuará no interior paulista.
- O time não vai para Maringá. Está em Prudente e vai ficar em Prudente. Se alguém falou isso, mentiu grotescamente. A única pessoa que eu conheço em Maringá é um primo, que se chama Paulinho Sanches, e mais ninguém. Nunca tive contato com mais ninguém - rebateu Walter Sanches.
Caso o time decida mudar-se para Maringá, sua situação se tornará muito mais complexa, e obrigará a CBF a se posicionar sobre o assunto.
- É uma situação inédita no futebol brasileiro. Num caso de uma mudança fora do seu estado de origem, o clube precisará ter o aval da CBF. Há um buraco aí, sem legislação específica. Para conseguir manter a vaga (do Brasileirão), o time não poderá mudar seu CNPJ. Teria grandes chances de precisar começar, nas competições da Federação Paranaense, na última divisão. Mas isso vai ter que ficar a critério da CBF – explicou Carlezzo.
Votorantim e Barueri: as cidades órfãs
Enquanto isso, a cidade de Barueri, apesar de abalada com a saída inesperada de seu clube, não desperdiçou sua torcida. Aproveitando a frágil situação do Campinas, da Terceira Divisão paulista, comprou o clube fundado pelos ex-jogadores Careca e Edmar, batizou-o de Barueri, e hoje tenta remontar o espírito do time. Atualmente, a equipe disputa a Copa Paulista e alcançou as quartas-de-final, podendo chegar à Copa do Brasil.
Outro clube que surpreendeu com a notícia de mudança de cidade foi o Votoraty, de Votorantim, que disputou a Copa do Brasil de 2010, sendo eliminado pelo Grêmio na segunda fase. Seu dono optou pela mudança para Ribeirão Preto, divulgando a notícia no dia 7 de abril, mas acabou voltando atrás. Os motivos, na época, foram a falta de apoio da cidade, o estádio que vivia em péssimas condições e o pequeno número de torcedores, somados à estrutura que teriam na nova casa.
A ideia ainda era fazer uma fusão entre o clube e o Comercial de Ribeirão Preto, mas a FPF barrou. Depois disso, o Votoraty, cuja mudança ainda não tinha sido concretizada, desistiu da participação na Série A2 paulista na próxima temporada, cedendo sua vaga para o Comercial. Sem resolver a situação do time, o presidente Maurício Villela vai tentar acordo para permanecer em Votorantim.
Apesar do anúncio da mudança do Votoraty, time considera voltar (Foto: Gilson Hanashiro / Agência Bom Dia)
Enquanto isso, a dança dos itinerantes continua: o último a ameaçar deixar sua sede original é o São Caetano. Com divergências com a prefeitura, que pretende tomar a sede social do clube, o presidente Nairo Ferreira de Souza cogitou trocar de cidade.
- Há tantas cidades com interesse em fazer futebol, com boa estrutura. Se nos expulsam da nossa casa, onde estamos instalados, então não tem sentido ficar aqui – defendeu o mandatário do Azulão.
Entenda o processo para que um clube mude de cidade
Como funciona o processo da mudança?
Em geral, por insatisfações com sua cidade de origem por diversos motivos (falta de apoio, altos custos de aluguel de estádio e alojamentos para os atletas etc), o clube opta por buscar um município que prometa satisfazer essas necessidades. Em alguns casos, como o do Guaratinguetá, a cidade de Americana se ofereceu para receber o time e fez uma proposta, com apoio e patrocínio garantido de empresas locais. Muitos defendem que um clube que troca de cidade deveria começar do zero, ou seja: na última divisão dos campeonatos de que participar. Porém, como na mudança o registro do clube é o mesmo, ele mantém os direitos de participação na série que disputava em sua antiga sede.
Para os clubes-empresas, essa mudança é apenas uma alteração no contrato social, prevendo que a sede vai ser modificada de cidade, o que altera apenas outras questões burocráticas, como as normas tributárias do novo local, fiscos etc.
O que a cidade ganha com a mudança?
Ganha um clube que dispute alguma divisão mais avançada, para chamar a atenção da cidade no cenário nacional, através do futebol. No lado social, o desenvolvimento do esporte na cidade, a realização de peneiras e avaliações nas escolinhas de base. Na questão econômica, pesam fatores como geração de empregos e movimentação comercial na cidade. Americana espera movimentar cerca de R$ 20 milhões ao ano com o novo clube, calculando custo anual de cerca de R$ 7 milhões. Nesse valor estão incluídos a criação de novos empregos, gastos e investimentos na cidade, pessoas e empresas que vão se beneficiar direta a indiretamente e também as que estarão envolvidas em eventos.
O que o clube ganha com a mudança?
Ganha o apoio da prefeitura da nova cidade, que pode incluir uso do estádio municipal gratuitamente, assim como um centro de treinamento e estrutura completa para os atletas, transporte e alimentação; apoio da torcida local; acertos com empresas da região, que ajudem o clube a arcar com seus custos.
Como um clube se torna clube-empresa?
Para que um clube se transforme em empresa, existem duas situações. Se ele é constituído do zero, cria-se um novo registro na federação, para que ela comece na última divisão. No caso de compra de outro time existente, o grupo interessado adquire os ativos que compõe o futebol profissional (como os direitos sobre os contratos dos atletas, propriedade das marcas e eventualmente, estádio) e passa a responder por ele. A partir daí, cabe apenas ao(s) mandatário(s) tomar as decisões que envolvem o clube.